Por Jeffrey Tucker
Retiremos
da frase a seguir toda a piedade cívica que lhe foi inseminada em nossa era
politicamente correta e vejamos o que há de errado com ela:
"Todos
nós devemos oferecer voluntariamente parte do nosso tempo a causas caritativas,
devolvendo à sociedade nossas fortunas por meio de um trabalho amoroso".
Não
podemos argumentar contra a instrução apresentada e nem contra o sentimento por
trás dela. Não há nada de errado com a entrega e com o sacrifício.
O problema está na escolha da linguagem. Ela contém uma palavra e três
frases cujo uso comum pode ser altamente enganoso, induzindo a vários tipos de
erro.
Voluntário
A
palavra "voluntário" é utilizada para descrever uma pessoa que faz
coisas pelo bem de outras, e todos nós conhecemos o propósito do termo.
Falamos sobre voluntarismo o tempo todo. Vários países possuem hoje
aquilo que é chamado de setor voluntário, também chamado de Terceiro Setor, o qual
supostamente se refere a organizações sem fins lucrativos e que possuem
empregos não remunerados. Porém, pensemos no significado literal de voluntário:
trata-se do ato de se fazer uma escolha consciente e não coagida, e agir de
acordo com a opção escolhida. O oposto seria ser forçado a fazer
algo. Assim, prisioneiros são forçados a dormir sobre capachos e pessoas
no exército são forçadas a marchar de um lado para outro. Já você e eu
podemos voluntariamente optar por dormir sobre um capacho ou marchar de um lado
para outro.
É
verdade que as pessoas que dedicam seu tempo a servir sopas aos pobres não são
forçadas a estarem lá. Porém, de que maneira a introdução de dinheiro,
salários e lucros altera de modo geral a natureza da escolha? Por acaso
os supervisores assalariados de abrigos para os sem-teto são menos voluntários
do que outras pessoas? De modo algum. Eles optaram por uma escolha
consciente, que é a de servir aos pobres, assim como "voluntários"
não pagos também fizeram a escolha consciente de estarem ali. Todos eles
são livres para ir fazer qualquer outra coisa.
Expandamos
este raciocínio agora para o setor comercial, que busca o lucro. Nenhuma
pessoa que trabalha no varejo ou com softwares ou em qualquer outra indústria
em uma economia livre está sendo forçada a fazer alguma coisa. Todas elas
estão ali por escolha voluntária, resultado de terem avaliado uma variedade de
opções e de terem escolhido uma opção em detrimento de todas as outras opções
possíveis (as oportunidades renunciadas representam aquilo que pode ser chamado
de "custo" daquela escolha).
O
médico que ministra remédios, o advogado que escreve um documento jurídico, o
vendedor que vende um terno para você, o balconista que opera o caixa — todos
estes são voluntários. O bancário é um voluntário. A introdução do
dinheiro nas trocas (e todas as ações, caritativas ou lucrativas, são trocas)
não altera nada a respeito da natureza da ação. Ela não faz com que algo
deixe de ser voluntário e passe a ser forçado.
E
isto não é apenas uma disputa terminológica. Há um significado ideológico
em se atribuir o termo "voluntário" à descrição de atividades não
remunerativas. Tal atitude evidencia um preconceito contra a economia monetária,
como se as trocas guiadas pelo dinheiro e pelo lucro representassem um objetivo
corrompido e maculado, ao passo que a remoção do dinheiro torna uma ação pura e
além de qualquer reprovação. É claro que tal raciocínio está completamente
equivocado.
Já
passou da hora de desmistificarmos a função do dinheiro na sociedade. Em
uma economia de escambo, bens e serviços são trocados diretamente uns pelos
outros. Isto funcionava bem apenas para economias totalmente
primitivas. Tão logo surgiram arranjos um pouco mais complexos, o escambo
chegou ao seu limite. Você não pode trocar uma vaca por um ovo, ou uma
fábrica de automóveis por um chapéu, pois estes bens não são divisíveis.
Você precisa da existência de algo chamado dinheiro para permitir estas trocas.
O dinheiro funciona como um substituto que permite com que trocas diretas sejam
realizadas por meios indiretos. Em vez de trocar sua vaca por um ovo,
você pode agora apenas trocar parte do produto de sua vaca (leite) por dinheiro
e, então, o dinheiro pela quantidade de ovos desejada. O dinheiro é um
mero substituto para bens e serviços que serão transacionados mais tarde.
O
dinheiro também possui a vital função de permitir o cálculo econômico, de modo
que você possa saber de antemão se as transações serão lucrativas (produtivas e
não destrutivas) ou se gerarão prejuízos (não produtivas e destrutivas).
Logo, a instituição do dinheiro não é inerentemente corrupta ou maculada; ela é
extremamente útil e necessária, e surge meramente em resposta ao desejo que as
pessoas têm de cooperar entre si.
Devolver à sociedade
"Devolver
à sociedade" é uma frase utilizada para implorar àquelas pessoas que
obtiveram sucesso em seus empreendimentos legítimos para que doem seu tempo,
talento e riqueza a algumas causas fora da sua área de atuação. Não há
problemas com o pedido de servir aos outros, mas há um enorme problema com o
termo "devolver". Ele sugere que as pessoas que têm dinheiro
tomaram alguma coisa de outras pessoas. Embora isso seja verdade para
pessoas que trabalham no setor público, é curioso notar que não se vê pedidos
lacrimosos para que estas devolvam à sociedade o que tomaram. Tais
pedidos aparentemente se aplicam apenas a empreendedores que trabalham no
genuíno setor voluntário da economia, que é o setor privado. E o fato de
um empreendedor privado ter obtido sucesso em seu empreendimento indica
precisamente que sua riqueza foi obtida não pelo confisco dos bens alheios, mas
sim pelo fato de ele ter sabido cooperar com consumidores que
voluntariamente adquiriram seus bens e serviços.
Vejamos
como isto funciona: quando você precisa de leite e está com pressa, você corre
para a padaria ou para a loja de conveniência mais próxima e pega uma embalagem
longa-vida. Você a leva até o caixa e o atendente diz quanto você deve
pagar. Neste momento, há um cálculo sendo feito. O atendente
determina que ele (mais especificamente, seu patrão) prefere seus $2,50 ao
leite. Você, por outro lado, determinou que prefere o leite aos $2,50 que
estão sendo pedidos em troca. Ato contínuo, vocês dois fazem a transação
e voilà — ambos estão em melhor situação em consequência deste ato.
Você
prestou um serviço àquele estabelecimento, e aquele estabelecimento prestou um
serviço a você. O estabelecimento ficou mais rico em termos de dinheiro e
você ficou mais rico em termos de bens. O que cada um dos lados deve ao
outro após esta troca? Absolutamente nada. O que a justiça
exige? Que eles mantenham este acordo comercial, e nada mais. O
leite não pode estar azedo. Caso você tenha pagado com cheque, ele tem de
ter fundos. Nada mais é requerido. Agora, se o atendente estiver
doente e precisando de ajuda, ou se o consumidor é pobre e precisa de abrigo,
isto é outra questão. Porém, o que está sendo pedido neste caso é algo
completamente isolado e sem nenhuma conexão com os resultados da transação
econômica.
Expandindo
esta lógica um pouco mais, podemos ver que ela se aplica a todas as pessoas que
ganham dinheiro, mesmo àquelas que ganham muito dinheiro (de forma honesta e
voluntária, é claro). Mesmo um indivíduo extremamente rico, e desde que
sua riqueza tenha advindo de trocas mutuamente benéficas, não tem de
"devolver" nada à sociedade, pois ele não retirou nada
dela. Com efeito, o inverso é que é totalmente verdadeiro:
empreendimentos dão à sociedade. Empreendedores correm enormes
riscos e se aventuram em investimentos incertos precisamente por estarem com o
objetivo de servir aos outros. Sua riqueza é apenas um sinal de que eles
alcançaram seus objetivos.
Trabalho amoroso
A
frase "trabalho amoroso" é utilizada como um eufemismo para trabalhar
sem receber. É uma frase apropriada caso seu significado esteja restrito
apenas àquelas pessoas que amam tanto o seu trabalho que estão dispostas a
efetuá-lo mesmo sem nenhuma remuneração. Mas a frase, erroneamente,
também carrega a implicação de que, se você está sendo pago, então não é um
trabalho feito por amor e com amor.
Certamente,
empregados bem sucedidos são majoritariamente aqueles que adoram seu
trabalho. Que eles recebam salários em troca de seus serviços prestados é
apenas um sinal do valor que o proprietário da empresa atribui ao seu
trabalho. Ambos estão cooperando para suas satisfações mútuas, algo que
pode perfeitamente ser classificado como uma forma de demonstrar amor.
Sendo assim, todo trabalho em um livre mercado é um trabalho amoroso.
Ambos os lados estão dando e recebendo.
Outra
maneira infeliz de se empregar esta frase é inferindo que, se você se recusar a
trabalhar voluntariamente, sem salários, então você não está demonstrando
amor. É um fato inegável que o uso do tempo significa o uso do mais
valioso recurso que possuímos. Se um trabalhador abre mão de um dia de
trabalho e seu salário é descontado por isso, ele pode estar abdicando de uma
quantia considerável de sua renda. Esta perda de renda é o seu custo; é o
que ele paga para fazer um "trabalho amoroso". Portanto, ele
não está apenas abrindo mão de sua renda: de certa forma, ele está contribuindo
com aquilo que de outra forma seria sua renda para a causa que ele está
servindo. E se este dinheiro fosse originalmente para comprar alimentos
ou remédios para seus filhos? Neste caso, fazer um "trabalho
amoroso" acabou se revelando um ato de crueldade.
Tal
raciocínio é válido até mesmo para o mais rico dos empreendedores. E se
ficar trabalhando — até mesmo ganhando dinheiro — for a melhor forma de servir
à comunidade? E se o indivíduo for um farmacêutico ou um médico ou um
gerenciador de website que está ajudando a fornecer informações vitais sobre saúde
ou qualquer outro assunto essencial? Trabalhar em troca de salários
representa uma contribuição tão grande para a sociedade quanto qualquer tipo de
trabalho voluntário. E se um indivíduo é o responsável pelo bem-estar de
milhares de empregados? Não seria um ato de amor ele permanecer neste
trabalho assalariado?
Não
há motivo algum para se afirmar que só há amor quando o indivíduo doa seu tempo
sem nenhum pagamento em troca. Você pode pagar ou ser pago e ainda assim
demonstrar amor.
Novamente,
isso tudo não é apenas uma questão semântica. Trata-se de uma abordagem
das suposições que muitas pessoas fazem sobre questões econômicas e que afetam
a ética. As pessoas frequentemente aceitam sem questionar a ideia de que
o "vínculo ao dinheiro" é incompatível com uma vida ascética e
limpa. Porém, só é possível ter uma compreensão realmente clara a
respeito deste assunto se entendermos que o dinheiro é meramente uma
instituição instrumental que serve à causa da cooperação humana, gerando
melhorias e benfeitorias.
Sim,
devemos fazer trabalhos voluntários para causas caritativas, e fornecer à
sociedade nosso trabalho amoroso. Só que isso não necessariamente
significa servir sopa em abrigos para sem-tetos. Ao contrário, pode
significar receber uma polpuda renda como corretor imobiliário ou como
investidor em empreendimentos imobiliários. Quando finalmente entendermos
que a economia de mercado não apenas não é incompatível com a justiça social,
como na realidade ela é uma genuína forma de se fazer a justiça social no mundo
real, passaremos a ter mais cuidado com a linguagem que utilizamos.
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