sábado, 13 de outubro de 2012

O bem da maioria é uma tirania



Ainda no primeiro período de uma turma de filosofia, o professor apresenta à classe um cenário que parece desafiar a perspectiva dos estudantes acerca da questão da moralidade.  

O desafio quase sempre é algo mais ou menos assim: "Absolutamente toda a nação da França irá morrer amanhã, a menos que você mate hoje o seu vizinho, que só tem mais um dia de vida.  O que você faria?"

Ou: "Você pode erradicar completamente o câncer da face da terra ao simplesmente apertar um botão, o qual irá matar uma pessoa saudável.  Você apertaria este botão?"

O propósito é criar um dilema moral.As perguntas contrapõem sua rejeição moral ao assassinato à sua culpa moral por não ter agido para salvar milhões de vidas.
Mas a realidade é que tais perguntas são um total engodo e simplesmente não podem ser respondidas de maneira honesta.  Elas postulam um mundo paralelo no qual as regras da realidade, como causa e efeito, foram dramaticamente alteradas.  Ou alguém realmente acredita que o simples apertar de um botão pode curar o câncer?  Este mundo criado parece funcionar muito mais de acordo com a fantasia do que com a realidade.
E como meu código moral se baseia na realidade do mundo existente, digo apenas que não sei o que faria caso as regras vigentes deixassem de existir.  Suponho que minha moralidade seria diferente, o que significa que minhas ações também seriam diferentes.
Por mais absurdas que sejam, tais perguntas são consideradas questões morais "difíceis".  Ao ter de lidar com elas, alguns estudantes passam a crer, paradoxalmente, que estar em conformidade com a moralidade requer a violação da moralidade de uma maneira mais profunda.  Afinal, não há maior violação do que o assassinato deliberado de outro ser humano.

Mas como pode a vida de uma pessoa ser mais importante do que as de milhões que estão em suas mãos?  Neste ponto, a moralidade deixa de ser uma questão de princípios e se torna mero um jogo de números, uma simples questão de análise de custo-benefício.  Isto não representa uma expansão da moralidade, como o professor alega, mas sim a criação de um conflito que destrói a moralidade.  Em seu lugar passa a existir uma zona cinza moral, um vácuo para o qual o utilitarismo corre para preencher o espaço vazio. 

Repentinamente, torna-se óbvio que o bem de muitos tem mais valor do que o assassinato de um só.  O coletivo sobrepuja o indivíduo.  A maioria torna-se mais importante do que a minoria.  O utilitarismo firme e "factual" torna-se preferível à moralidade cinza e inconsistente. 

As perguntas filosóficas levam diretamente à política, pois assassinar uma pessoa em nome do bem maior não é meramente uma questão moral, mas também uma questão de direitos individuais.  Se você aceita a moralidade de tal ato, então você também aceita a conveniência e a autoridade política de se assassinar um ser humano inocente. 

Quando formuladas em termos políticos, versões não-hipotéticas desta pergunta filosófica são frequentemente identificadas.  Por exemplo, "Devem os ricos ou os empreendedores (os poucos) ser fortemente tributados para que se forneça saúde pública para os vários?"  Aqui, um bem maior é contraposto aos direitos individuais.  Mas, mais do que isso, os direitos individuais de dois grupos são confrontados, sendo que os direitos de uma minoria resistente passam a ser vistos como uma barreira aos "direitos de todos os outros".  Empreendedores passam a ser considerados indivíduos que não têm nenhum direito de manter sua renda caso isso impeça a maioria de ter acesso gratuito a serviços médicos. 

 Este conflito criado politicamente é tão absurdo quanto aquele criado filosoficamente.
O individualista britânico do século XIX, Auberon Herbert, abordou esta questão do "bem da maioria".  Disse ele: "Nunca foi inventada uma frase mais ilusória e capciosa do que essa.  O Diabo estava no auge de seu perspicaz e engenhoso humor quando ele introjetou esta frase no cérebro dos homens.  Eu a considero totalmente falsa em seus fundamentos." 

Por que ela é falsa?  Porque a frase parte do princípio de que uma moralidade mais elevada requer a violação de direitos individuais.    Ou, nas palavras de Herbert, "Ela pressupõe que existem dois 'bens' opostos, e que um bem deve ser sacrificado em prol do outro.  Só que, em primeiro lugar, isto não é verdade, pois a liberdade é um bem único e aberto a todos, e não requer nenhum sacrifício de terceiros; e, em segundo lugar, este falso antagonismo (onde nenhum antagonismo genuíno existe) entre dois bens distintos implica uma guerra perpétua entre os homens." 

Herbert está se baseando em duas teorias intimamente relacionadas: a primeira, "a universalidade dos direitos"; e a segunda, "a harmonia natural dos interesses".  A universalidade dos direitos significa que todos os indivíduos possuem os mesmos direitos naturais, sem exceções e sem privilégios. 

Raça, gênero, religião ou outras características secundárias não interessam; somente a básica e primordial característica de ser um humano é que é importante.  Uma harmonia natural de interesses significa que o exercício pacífico dos direitos individuais de uma pessoa não afeta e nem prejudica o similar exercício dos direitos individuais de qualquer outra pessoa. 

Minha liberdade de consciência ou de expressão não proíbe a do meu vizinho.  A autoridade pacífica que afirmo ter sobre meu próprio corpo não diminui ou afeta em nada a reivindicação de propriedade sobre si própria de nenhuma outra pessoa.  Com efeito, quanto mais afirmo o princípio da propriedade sobre si próprio, mais robusto e mais garantido este princípio se torna para todas as outras pessoas.

Somente em um mundo onde os direitos não são universais, onde o comportamento pacífico das pessoas está em permanente conflito, é que faz sentido aceitar a necessidade de se sacrificar indivíduos em nome de um bem maior.  Mas este não é o mundo real, e sim um mundo que foi criado para propósitos políticos. 

 Herbert explicou qual a suposição essencial que dá sustento a esse mundo falso: a aceitação automática do próprio conceito de "bem maior".  Ele perguntou: "Por que dois homens devem ser sacrificados em prol de três homens?  Todos nós aceitamos que três homens não devem ser sacrificados em benefício de dois homens; mas por que — em termos de questões morais — devemos aceitar aquilo que é quase tão ruim, imoral e tacanho, que é o sacrifício de dois homens em prol de três homens?  Por que sacrificar sequer um... quando a liberdade exclui toda e qualquer necessidade de sacrifício?"
Herbert negava a validade "desta 'lei dos números', que é realmente a lei que estamos seguindo quando falamos de autoridade do estado [...] sob a qual três homens se tornam absolutamente supremos e dois homens se tornam absolutamente dependentes."  Em vez de aceitar a lei dos números como uma expressão do bem maior, Herbert a via como uma construção social conveniente, rotulando-a de "uma lei puramente convencional, um mero recurso rude e parcialmente selvagem que não sobrevive a uma crítica guiada pela razão.  É impossível defender tal lei utilizando considerações sobre justiça universal.  Seu proponente pode apenas confessar a conveniência de sua implementação." 

Para quem era conveniente a criação de um conflito social?  Por que criar um mundo artificial repleto de conflitos?  Para solucionar os problemas criados, uma grande fatia de poder foi retirada dos indivíduos e transferida para uma classe governante. 

Escreveu Herbert: "A tendência de todas as grandes e complicadas criações é a de estabelecer uma classe governante, pois somente ela entende o funcionamento da sua criação, e somente ela é bem versada no hábito de controlar esta sua criação; e a tendência de uma classe governante engenhosa, uma vez estabelecida, é a de, em momentos críticos, poder fazer praticamente o que quiser com a nação..."
Em vez de resolver um problema social, a classe governante legou um efeito devastador sobre o bem-estar das pessoas comuns, as quais se tornaram "um confuso rebanho de cordeirinhos esperando por um cão pastor que os conduza através do portão."  Ironicamente, ao alegar que o coletivo era superior, uma ínfima minoria passou a controlar a vasta maioria.  Consequentemente, o "bem maior" passou a ser qualquer coisa que sirva aos interesses da classe governante. 

Mas este processo ainda pode ser revertido.É necessário "individualizar" o coletivo e a nação de modo que "vontade, consciência e discernimento" retornem a cada indivíduo.
Quando isso ocorrer, a sociedade estará oferecendo às pessoas o mais nobre dos presentes e o maior dos benefícios: a sua própria responsabilidade individual.

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