Por Walter Block
Uma
piada:
A: "Você sabe a diferença entre uma cozinha e um banheiro?"
B: "Não."
A: "Então não venha à minha casa."
Assim
como é importante uma pessoa, em seus afazeres diários, saber diferenciar um
banheiro de uma cozinha, também é importante que ela saiba a distinção crucial
que existe na filosofia político-econômica entre o governo e arranjos
contratuais privados.
Porém, é
aqui que a analogia entra em colapso. Existem outros discernimentos que
devemos aprender durante nossa vida que são ainda mais importantes do que saber
distinguir entre esses dois aposentos (por exemplo, não coma veneno,
alimente-se sempre, cuide dos bebês); porém, na teoria libertária, simplesmente
não existe uma delineação mais importante do que aquela que existe entre a coerção
(o governo) e a cooperação voluntária (o mercado).
Entretanto,
tão arriscada é a natureza da nossa disciplina, que existem até mesmo pessoas
ostentando-se a si próprias como libertárias sem ter qualquer conhecimento
dessa distinção. Pior ainda, existem aquelas que escrevem artigos em
jornais acadêmicos, e até mesmo livros, dedicados em toda sua inteireza a
suprimir a diferença entre o estado e a interação privada no mercado.
E elas
sempre se escondem atrás de algum argumento, sempre torpe e irrisório. O
preferido em seu arsenal é o do "contrato do condomínio". Esses
"libertários" discursam graciosamente sobre a severidade e
abrangência das regras desses conjuntos residenciais. Por exemplo, elas
tipicamente exigem que todo o exterior seja pintado da mesma cor; que as grades
ou cercados sejam idênticos e que não haja ar condicionado de janela.
Algumas vão tão longe a ponto de estipular a cor das cortinas que podem ser
vistas lá da rua, e até mesmo obrigam, ou proíbem, coisas como carpetes, persianas,
portas de tela e capachos. Vários condomínios determinam se os carros
devem, ou não podem, estacionar em garagens. Alguns proíbem crianças
completamente; outros, especificam idade mínima para os residentes (por
exemplo, 60 anos para comunidades de aposentados). E há uma legião de
regras e regulamentações em relação à lei do silêncio, a festas, a onde
bicicletas podem ser guardadas etc. Comparadas até mesmo a alguns
vilarejos e cidades pequenas, as regras dessas comunidades privadas podem ser intrusivas,
abrangentes e, frequentemente, arbitrárias.
E há
também o fato de que ambos os tipos de organizações (estado e condomínios
provados) são tipicamente geridos de acordo com princípios completamente
democráticos. E não somente isso: de certa forma, pode-se realmente dizer
que, em ambos os casos, as pessoas concordam em participar do sistema.
No caso
do condomínio, isso é fácil de ver. Todos os membros do conjunto assinam
um contrato de compra, indicando sua disposição de se sujeitar à constituição
do condomínio e a uma determina norma (maioria, super maioria, maioria
absoluta, não importa) de alteração dos termos.
Para
cidades, ninguém, é claro, assina a constituição. Entretanto, argumentam
esses "libertários", ao se mudar para uma localidade, o recém-chegado
sabe perfeitamente bem as regras da entidade política, ou pode facilmente
aprendê-las: nada de cuspir nas ruas, as especificações de zoneamento, os
limites de velocidade etc. E, em praticamente todos os casos, as
regulamentações municipais são bem menos universais do que aquelas dos
condomínios. É verdade, conclui esse argumento, que o governo municipal
coleta "impostos" ao passo que o condomínio coleta "taxas"
de sócio, mas essa é uma distinção sem qualquer diferença.
A
primeira rachadura desse argumento aparentemente hermético e incontestável
começa a ser vista quando examinamos não a posição do recém-chegado, mas a de
um proprietário que já estava lá antes de a cidade ser incorporada; ou,
alternativamente, quando analisamos o infortúnio do proprietário que até então
morava fora dos limites da cidade, mas que foi incorporado por ela quando ela
se expandiu para colocar sob sua jurisdição pessoas como ele, que viviam em
áreas contíguas mas até então não incorporadas. (Vamos considerar apenas
o segundo caso, e não o primeiro, uma vez que hoje existem muito mais
indivíduos vivos que vivenciaram o segundo, e não o primeiro).
Assim, o
prefeito vai até esse proprietário e diz pra ele: "Tenho boas notícias
para o senhor, seu Zeca. O senhor agora faz parte da nossa cidade.
Vamos coletar seu lixo, fornecer água e serviços de esgoto, guarda municipal,
bombeiros, sociedade na biblioteca municipal... puxa, temos até um piscinão
municipal. O senhor vai gostar! O senhor terá de pagar uma taxa para
o bem-estar dos pobres também, é claro, mas o senhor sempre ajudou os
desfavorecidos aqui na sua vizinhança, portanto isso não será nenhum fardo para
o senhor."
Ao que
Zeca responde: "Isso realmente parece ser maravilhoso, seu Clemente.
Puxa, estamos ficando mais modernos aqui, hein? Mas olha só: vou deixar
passar essa maravilhosa oportunidade. Por ora, não vejo motivos para
mudanças. Obrigado, mas não, obrigado."
E então o
prefeito Clemente engrossa: "Creio que minha posição ainda não ficou
clara o bastante. Não se trata realmente de uma opção sua. Fizemos
uma votação quanto a isso, e o seu lado perdeu. Como o senhor faz parte
do jogo queira ou não, o senhor tem de jogar e aceitar as decisões".
Nesse
momento Zeca retruca: "Hitler chegou ao poder por meio de eleições.
Portanto não venha o senhor me falar sobre as maravilhas das cédulas
eleitorais. Entretanto, vou lhe confessar uma coisa, seu Clemente.
Pelo menos o senhor é franco. Pelo menos o senhor não reveste uma
agressão explícita com o manto da mentira, como fazem aqueles pretenso
'libertários' que não veem diferença entre ser incorporado a uma cidade contra
sua vontade e comprar voluntariamente um apartamento em um condomínio.
Sua exigência para que eu lhe dê dinheiro de impostos foi refrescantemente honesta,
embora um tanto brutal, para uma pessoa que eu costumava considerar um bom
vizinho."
E lá se
vai a primeira rachadura na blindagem, o caso em que o proprietário é
forçosamente incorporado à cidade. Existe de fato uma diferença relevante
entre ser compelido a fazer parte de uma cidade e se juntar voluntariamente a
um condomínio.
Mas o que
dizer quanto ao exemplo mais convincente do lado "libertário" desse
arranjo, aquele em que um forasteiro chega a uma cidade, compra um imóvel etc.,
sabendo perfeitamente bem a que regras e impostos ele estará sujeito? Não
seria verdade que, ao menos nesse caso, o governo municipal é indistinguível
daquele conselho administrativo que gere o condomínio?
Nem um
pouco.
Considere
o seguinte caso. Eu compro um apartamento em uma vizinhança perigosa de
uma cidade qualquer. Eu sei perfeitamente bem que a criminalidade ali é
alta, e que eu serei um alvo preferencial, dada a minha aparência abastada (com
muita ironia aqui). Talvez eu tenha tomado essa decisão econômica por
causa dos imóveis mais baratos, ou porque quero me aproximar mais do
"povo" para melhor estudar sua situação e ajudar a erradicar a
pobreza. Em todo caso, assim que eu me mudo pra lá, já sou logo confrontado
por um marginal de rua que, canivete apontado pra mim, me ordena:
"Passa
a carteira, seu rico de m...., ou eu vou te furar todinho."
Ao que eu
imediatamente sacaria meu Colt .45 e diria para o criminoso: "Meu
bom homem, você está confrontando um adversário com poder de fogo
superior. Cesse e desista de seus métodos maléficos, e vá cuidar de seus
assuntos mais legítimos, se é que os tem."
E então
esse elemento, o qual eu não imaginava ser um aprendiz de filósofo, faz a
seguinte consideração: "Você parece não estar entendendo. Sou
um daqueles 'libertários' que dizem que, já que você se mudou para cá tendo a
perfeita consciência de que estaria sujeito a assaltos do tipo que estou
fazendo agora (ou ao menos estava... Nunca havia me deparado com uma vítima tão
pouco cooperativa como você; onde esse mundo vai parar?), você com efeito concordou
em ser assaltado por ladrões como eu. Portanto, deixe de ser contestador
e aceite o programa, cara!"
O ponto é
que, como podemos facilmente ver, a capacidade de pressupor um evento não é de
modo algum equivalente a concordar com ele. Sim, posso perfeitamente bem prever
que, se eu me mudar para uma região violenta, provavelmente serei vítima de
algum crime de rua. Porém, isso de modo algum significa que estou concordando
com tal atitude execrável.
Entretanto,
de acordo com o argumento "libertário" que estamos analisando, ambas
as coisas são indistinguíveis.
Similarmente,
é de se esperar que o indivíduo que fixa residência em uma cidade com impostos,
leis de zoneamento etc., saiba que estará sujeito a essas depredações, assim
como todos os outros moradores da cidade. Mas daí a dizer que ele
concordou em ser coagido por esses malfeitores há uma distância enorme. A
permissão que o recém-chegado à cidade dá ao cobrador de impostos para extrair
dinheiro dele é a mesma que o recém-chegado a uma vizinhança violenta dá ao
assaltante que viola seus direitos.
Com
efeito, em um contraste muito nítido, o comprador de um apartamento não apenas
pressupõe que estará sujeito a um pagamento mensal de uma taxa de sociedade, e
a um colosso de restrições em relação ao que ele pode fazer com sua
propriedade, como ele também de fato consente em pagar aquele e estar sujeito a
este. A prova disso é que ele assina um contrato de venda, o qual estipula
todas as regras acima. Já no caso do cidadão que vai pra uma cidade, não
existe tal contrato assinado.
Não é
exagero algum dizer que, em toda a teoria libertária, a distinção mais
importante que existe é aquela entre a coerção e a não coerção. Remova
essa divergência e não sobrará absolutamente nada do libertarianismo.
Isso é tão importante, que vale a pena repetir: o libertarianismo consiste nas
implicações dessa única e solitária distinção, e em nada mais. Sem ela,
não há absolutamente teoria alguma.
Uma coisa
é ver e ouvir comunas, socialistas, esquerdinhas, social-democratas e
neoconservadores denegrirem essa distinção. Isso, aliás, é o que se
espera deles. Trata-se de uma atitude perfeitamente apropriada para esses
tipos. Se eles não fizessem isso, eles dificilmente poderiam ser
caracterizados pelos rótulos acima. Outra coisa bastante diferente é ver
"libertários" cometendo esse mesmo erro. Ou eles se livram
dessa perniciosa falsa doutrina ou ao menos tenham a decência de parar de se auto-intitular
libertários.
Walter
Block é membro sênior do Mises Institute e professor de economia na
Loyola University, Nova Orleans.
Nenhum comentário:
Postar um comentário