O brasileiro foi às ruas e gostou - mas continua sem entender nada
Por Leandro Roque
Após mais de duas semanas de
protestos diários nas ruas, já é possível fazer uma análise mais acurada das
motivações das pessoas envolvidas nas manifestações.
Até o momento, há dois grupos
envolvidos. Um grupo é formado por pessoas que fazem reivindicações as
mais diversas e opostas possíveis: há desde libertários pedindo redução de
impostos, livre concorrência e desregulamentações a grupos comunistas pedindo a
estatização geral do transporte público. Há grupos que fecham estradas
pedindo a construção de viadutos, a instalação de lombadas eletrônicas e o
barateamento do sistema de transportes, e há grupos que fecham avenidas
exigindo maiores salários para professores e médicos, e mais recursos
direcionados para a saúde e a educação. Há estudantes universitários
pedindo mais bolsas e um maior valor para as bolsas, e há professores
universitários querendo que seus salários sejam equiparados aos dos professores
das "universidades de ponta". Há alienados que manifestam
apenas pelo prazer de segurar um cartaz e gritar refrãos bacanas e há
espertalhões que utilizam estes alienados para aumentar o coro em prol de suas
reivindicações.
A esmagadora maioria clama pelo
"fim da corrupção" e por mais e melhores serviços públicos, o que
inclui "transporte público, gratuito e de qualidade", o que é
equivalente a um círculo triangular. E, até o momento, a vitória tem
estado majoritariamente do lado estatista: os governadores do Rio Grande do
Sul (Tarso Genro, do PT) e de Goiás (Marconi
Perillo, do PSDB) acabam de anunciar o passe livre estudantil, o que significa
que os pobres agora pagarão pelo transporte de universitários. Já o
senador Renan Calheiros, ávido por melhorar sua reputação perante a esquerda
estudantil, foi ainda mais longe e aprovou em
regime de urgência a votação da proposta de passe livre estudantil para
simplesmente todo o país. Basta o Senado aprovar e a estrovenga estará
implementada. O PLS 248/2013 "assegura gratuidade no sistema de
transporte público coletivo local a estudantes do ensino fundamental, médio ou
superior regularmente matriculados e com frequência comprovada em instituição
pública ou privada."
Antes disso, a Comissão de
Constituição e Justiça do Senado já havia aprovado uma PEC que classifica o
transporte como um "direito social".
O outro grupo é formado por
arruaceiros — que são formados por marginais oriundos de todas as partes do
país — que estão ali apenas pelo prazer de vandalizar e destruir propriedade
privada. O ocorrido na quarta-feira passada em Belo Horizonte foi
sintomático: várias concessionárias de veículos foram saqueadas, incendiadas e
completamente depredadas, levando a uma perda total de estoques. Uma
revendedora de motos foi invadida e, não conseguindo roubar as motos, os
arruaceiros optaram por incendiá-las nas ruas. (Veja as imagens a partir do marco
2:00). Em Porto Alegre,
além de dois prédios públicos, dois prédios residenciais, nove agências
bancárias e 21 lojas foram depredadas e saqueadas, e 20 contêineres de lixo
foram virados e incendiados. Atos semelhantes ocorreram nas manifestações
de todas as capitais do país.
Quanto a este segundo grupo, não há
nenhuma controvérsia sobre o que deve ser feito. Dado que o governo
existe e dado que ele é uma instituição que detém o monopólio da violência,
então sua função precípua é utilizar esta violência para defender o indivíduo e
a propriedade privada de ataques violentos. Logo, a polícia deve ser
completamente liberada para ministrar punição instantânea a estes
arruaceiros. Mas isso não irá ocorrer porque nossa Constituição
socialista não considera que danos à propriedade privada sejam crimes sequer
dignos de encarceramento. No Brasil, se você vandalizar um carro ou
destruir uma agência bancária ou uma concessionária de veículos o máximo que
irá lhe ocorrer será a prestação de serviços comunitários ou o pagamento de
algumas cestas básicas. Já a depredação de patrimônio público recebe uma
punição mais severa e o arruaceiro de fato pode ir para a cadeia. Tal
inversão de valores é digna de países de mentalidade coletivista. A
devoção à inviolabilidade da pessoa e da propriedade privada não faz parte do
nosso sistema de valores.
Os motivos das manifestações
Mas a intenção deste artigo não é se
concentrar nos arruaceiros, mas sim nos motivos que levaram as pessoas às ruas
para fazer reivindicações. E o fato é que quem acompanha nossos artigos sobre a economia brasileira aqui
no IMB não deveria estar surpreso com as reivindicações, mesmo com aquelas que
involuntariamente clamam por mais estado. Tudo está ocorrendo exatamente
como explica a teoria dos ciclos econômicos.
Há duas grandes motivações que estão
levando as pessoas às ruas: uma é de cunho econômico e a outra é de cunho
emocional. Só que ambas são interligadas.
O período que vai de 2007 até meados
de 2011 foi mágico para a economia brasileira. Mesmo a recessão de 2009 —
que foi curta pelos motivos explicados aqui — não abalou em
nada a confiança do brasileiro de que o futuro finalmente havia chegado, que o
país deixaria de ser uma eterna promessa, e que o gigante finalmente estava desperto.
Ledo engano. Tudo não passava
de um truque possibilitado pela expansão artificial do crédito, algo com o qual
o brasileiro ainda não estava acostumado. A expansão artificial do
crédito não gera prosperidade, mas sim uma enganosa aparência de pujança.
No nosso atual sistema monetário e
bancário, quando uma pessoa ou empresa pega empréstimo, os bancos criam
dinheiro do nada (na verdade, meros dígitos eletrônicos), emprestam este
dinheiro e cobram juros sobre eles. Ou seja, todo esse processo de expansão
de crédito nada mais é do que um mecanismo que aumenta a quantidade de
dinheiro na economia. Esse aumento da quantidade de
dinheiro na economia faz com que, no primeiro momento, haja uma grande sensação
de prosperidade. A renda nominal aumenta, os investimentos aumentam, o
consumo aumenta e o desemprego cai.
A sensação vivenciada pelas pessoas
durante essa fase de prosperidade artificial é maravilhosa: a renda nominal das
pessoas cresce anualmente; investidores se animam ao ver que o valor de suas
ações cresce diariamente; as indústrias de bens de consumo conseguem vender
tudo que põem no mercado e a preços crescentes; os estoques das empresas são
prontamente vendidos; apartamentos são vendidos ainda na planta; novos
empreendimentos são continuamente iniciados; carros zero são vendidos
aceleradamente; novos restaurantes e novas lojas são inaugurados diariamente;
os preços e os lucros sobem mensalmente; trabalhadores encontram empregos a salários
nominais cada vez maiores; restaurantes estão sempre cheios e com longas listas
de espera apenas para arrumarem uma mesa; trabalhadores e seus sindicatos veem
o quão desesperadoramente empresários estão demandando seus serviços em um
ambiente de pleno emprego, aumentos salariais e (nos países mais ricos)
imigração; líderes políticos se beneficiam daquilo que parece ser uma economia
excepcionalmente boa, a qual eles venderão ao eleitorado como resultado direto
de sua liderança e de suas boas políticas econômicas; burocratas responsáveis
pelo orçamento do governo ficam impressionados ao descobrir que, a cada ano, a
receita está aumentando em cifras de dois dígitos.
Porém, tal arranjo não pode durar.
Há um enorme descoordenação entre o comportamento dos consumidores e dos
investidores. Os consumidores seguem consumindo sem a necessidade de
poupar, pois a quantidade de dinheiro na economia aumenta continuamente, o que
torna desnecessária qualquer abstenção do consumo. E os investidores
seguem aumentando seus investimentos, os quais são totalmente financiados pela
criação artificial de dinheiro virtual feita pelos bancos e não pela poupança
genuína dos cidadãos. Tal arranjo é completamente instável.
Trata-se apenas de uma ilusão de que todos podem obter o que quiserem sem
qualquer sacrifício prévio.
No Brasil, os indivíduos
intensificaram seu endividamento para poder consumir, na crença de que a
expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria
aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas
embarcaram em investimentos de longo prazo estimuladas tanto pela expansão
monetária coordenada pelo Banco Central (o que fez com que os investimentos se
tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o
aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos
seus investimentos.
No entanto, este aumento do
endividamento também trouxe um aumento nos calotes, o que deixou os bancos mais
cautelosos em continuarem expandindo o crédito. E os bancos estarem mais
cautelosos significa menor expansão da quantidade de dinheiro na economia (como
mostram os gráficos deste artigo).
Consequentemente, a taxa de crescimento da quantidade de dinheiro na economia
brasileira começou a desacelerar, o que levou a uma estagnação da renda nominal
das pessoas. Isso fez com que o modelo de crescimento baseado na simples
expansão do crédito se esgotasse.
No entanto, os preços continuaram
subindo, tanto em decorrência de toda a expansão monetária que já havia
ocorrido quanto pela súbita desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2012 e
intensificada agora em 2013, o que tornou as importações mais caras e as
exportações mais atraentes. Uma combinação entre menos importações e mais
exportações reduz a oferta de bens no mercado interno, o que gera uma pressão
nos preços destes bens.
Esse arranjo que combina renda
nominal estagnada, preços em contínua ascensão e endividamento (e
inadimplência) em alta está gerando não apenas uma enorme sensação de aperto
financeiro nos brasileiros, como também trouxe uma grande frustração a estas
pessoas. Aquela economia que outrora parecia invejável e rumo a um futuro
auspicioso repentinamente estagnou-se, perdeu todo o seu brilho e, agora sem
essa camuflagem, explicitou toda a sua realidade: infraestrutura caótica,
serviços públicos marfinenses, inflação de preços sempre acima da meta do Banco
Central (meta esta que já é alta até mesmo entre países em desenvolvimento),
endividamento crescente, renda estagnada e famílias cujos salários mal chegam
ao final do mês.
Um perfeito exemplo de como uma
expansão econômica artificial mexe com o psicológico e com o senso de realidade
das pessoas nos foi fornecido por esta capa da revista IstoÉ, de 6 de janeiro
de 2010, na qual o hebdomadário dizia que
já éramos uma potência:
"O Brasil está conseguindo o
raro feito de extrair opiniões quase unânimes mundo afora. São poucos,
pouquíssimos, os economistas que ousam discordar de que o País entrou em um
ciclo de desenvolvimento sustentado. E mais: são ainda mais raros aqueles que
duvidam da capacidade de o Brasil se tornar uma das maiores potências
econômicas do planeta em um par de dezena de anos."
Dentre os "poucos, pouquíssimos,
economistas que ousam discordar de que o País entrou em um ciclo de
desenvolvimento sustentado" certamente estão os economistas deste site,
que ainda em 2010 alertavam que
tudo era infundado.
É claro que, após ter sido
bombardeado por inúmeras notícias como essa durante quase 3 anos, é natural que
o brasileiro médio hoje se sinta deprimido, e até mesmo revoltado, ao constatar
que foi enganado e que a economia pujante que lhe haviam prometido nada mais
era do que um conto de fadas. Ludwig von Mises explicou bem este
componente emocional em suas obras. As pessoas se acostumam a um padrão
de vida crescente durante a fase da expansão econômica artificial e, mais
tarde, quando a nova realidade se impõe avassaladoramente, elas se recusam a
aceitar que tudo não havia passado de uma gostosa mentira, pois imaginavam que
aquela fase próspera realmente representava um novo e definitivo padrão.
Os países da Europa mediterrânea estão vivenciando o mesmo fenômeno.
Aturar corrupção, uma infraestrutura
caótica e serviços públicos moçambicanos é relativamente fácil quando se está
com a renda crescendo mais que os preços e com a capacidade de consumo em
alta. Porém, tão logo esses indicadores se invertem e o endividamento
teima em não cair, a depressiva realidade se impõe e resta ao cidadão ir
protestar nas ruas clamando por medidas que arrefeçam sua situação.
Ninguém vai às ruas protestar contra a corrupção ou para exigir melhorias na
saúde, na educação e nos demais serviços públicos quando a economia está com
bons indicadores, a capacidade de consumo está em alta e o dinheiro chega até o
final do mês. No entanto, basta esses indicadores piorarem, que todo o
esforço de mobilização se torna mais fácil. Ou será que alguém acredita
que Collor caiu por causa de um Fiat Elba?
A verdade é que o povo brasileiro
queria crédito farto a juros baixos para comprar imóveis, carros, motos,
televisores e outros eletrodomésticos. Conseguiu. Queria que o
governo expandisse continuamente seus gastos para, dentre outras coisas,
aumentar as contratações para o setor público, que é o objetivo de vida de
vários integrantes da classe média. Conseguiu. Queria que o governo
protegesse a indústria nacional e seus empregos aumentando as alíquotas de
importação de praticamente
todos os produtos estrangeiros (chegando ao pontoorganizar operações ao
estilo da Stasi nos aeroportos, abrindo malas e confiscando até mesmo as roupas
que os brasileiros compravam no exterior). Conseguiu. Aceitou que o
governo utilizasse o BNDES para conceder empréstimos subsidiados para grandes
empresas, as quais iriam se transformar em "campeãs mundiais".
E defendeu quando o governo obrigou todas as grandes empresas do país a
produzir utilizando uma determinada porcentagem de insumos fabricados no
Brasil, o que deu a estes fabricantes a capacidade de aumentar seus preços sem
sofrer concorrência.
O povo aprovou tudo isso, mas
estranhamente não quer arcar com as consequências destas políticas, que são o
aumento da inflação e do endividamento, a estagnação da renda, e a perpetuação
da ineficiência. E não apenas não quer arcar, como está pedindo mais ação
justamente do ente que causou tudo isso. Trata-se de um exemplo clássico
de um povo que não sabe estabelecer uma relação de causa e efeito.
Conclusão
Como já explicou o economista Gary North,
a maioria dos protestos de rua tem uma mesma característica: uma hora eles
acabam. É impossível manter protestos maciços como estes que estamos
vivenciando por um longo período de tempo. Ou os manifestantes se cansam
e perdem a motivação, ou as autoridades se tornam mais bem organizadas e passam
a reprimir com mais vigor. Mas há também uma pequena chance de as coisas
irem para o lado oposto. Logo, quando demonstrações como essa começam a
ocorrer, ou elas se enfraquecem e desaparecem ou elas se agravam e acabam
derrubando o governo.
Para o governo, a melhor estratégia é
continuar prometendo reformas. Se o povo engolir as promessas, as
manifestações irão acabar. Mas essa estratégia é um tanto arriscada, pois
pode ser que as manifestações ganhem novos adeptos, se espalhem por todo o país
e cheguem a um ponto em que a própria legitimidade do governo é colocada em
xeque. Neste ponto, como é de praxe na América Latina, pode ocorrer um
golpe de estado. O governo é derrubado e uma junta militar assume o
controle.
Uma coisa boa que poderia advir
destes protestos seria se eles solapassem a confiança e a esperança que o povo
brasileiro deposita no estado. Se eles erodissem a santidade do governo,
se eles explicitassem a incompetência do governo e fizessem com que as pessoas
finalmente entendessem a verdadeira natureza do governo, já teriam feito algo
positivo. Qualquer coisa que enfraqueça a crença no estado, e que não
recorra à violência, é positiva. Se uma geração de jovens entender que
não deve depositar no governo suas esperanças de uma vida melhor, então as
manifestações terão gerado resultados positivos. Para que isso ocorra, é
essencial que grupos pró-liberdade e pró- livre mercado se aproveitem desta
oportunidade para difundir a mensagem de que menos governo e menos burocracia
geram mais liberdade e mais prosperidade. Isso sim poderia gerar efeitos
positivos.
Mas não tenho muitas esperanças quanto a isso. No geral,
estes manifestantes são impermeáveis à lógica e estão defendendo apenas mais
espoliação e mais verbas para políticos e sindicatos, ainda que não entendam
que é isso que eles estão fazendo.
O fato é que, com a renda estagnada, com a inflação de preços em
teimosa alta, com o endividamento e a inadimplência em níveis inauditos, e com
o real se esfacelando perante o euro e o dólar, encarecendo sobremaneira as
importações de insumos básicos e diminuindo nosso padrão de vida — exatamente
como queriam o Banco Central e o Ministério da Fazenda —, há um risco real de o
caldo entornar e a situação ficar realmente fora do controle.
Estamos vivenciando exatamente aquilo que ocorre quando se entrega o comando da
economia a pessoas que não têm a capacidade de gerenciar nem sequer uma carroça
de pipoca. A democracia e o apelo das massas — exatamente o arranjo que
todo mundo venera — levaram a isso. Não há por que reclamar e nem há o
que se estranhar.
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