Por Hans F.Sennholz
A velha
lei cristã que nos ensina a tratar com respeito, cortesia e amabilidade as
pessoas é uma regra irredutível de conduta individual, uma regra que não possui
flexibilidade ou brechas que permitam interpretações deturpadas. Trata-se
de um axioma básico para que toda a cooperação social e coexistência humana
seja pacífica e produtiva. Com efeito, trata-se de um alicerce
indispensável para toda e qualquer civilização que queira prosperar.
No
entanto, é inegável que estejamos, de maneira inconsciente e gradativa,
solapando a rigidez deste alicerce. E tal procedimento já vem ocorrendo
há várias décadas, de modo que aquele outrora robusto alicerce hoje se tornou
apenas um pequeno toco não mais capaz de sustentar com vigor as relações
inter-humanas e a toda a vida social.
É verdade
que a lei do amor ao próximo ainda fundamenta grande parte de nossas relações
individuais diretas. Dentro de nossas famílias, praticamos — ou ao menos
nos esforçamos para praticar — este mandamento. Em nossas relações diretas
com nossos parentes próximos e até mesmo com nossos vizinhos, nos esforçamos
para não infligir nenhum dano sobre eles e suas famílias. Uma relação
amistosa e cordial ainda é algo mais frequente do que uma relação maliciosa e
destrutiva. Em todas as nossas interações sociais, sejam elas associações
econômicas ou quaisquer outras relações casuais, basicamente respeitamos os
direitos e a liberdade de nosso semelhante.
Mas tudo
isso se altera quando entra em cena o estado. Ou, colocando de outra
forma, tudo isso se altera quando vemos no estado uma ferramenta legítima
para a imposição e a consecução de nossas demandas. Com o estado,
somos indivíduos transfigurados. Somos outros. Com este organismo
político, não há espaço para a lei do amor ao próximo; não há espaço para a
cortesia, para o respeito e para a amabilidade. Quando agimos utilizando
o estado para atender às nossas demandas políticas, agimos de uma maneira que
um indivíduo minimamente escrupuloso jamais sonharia em agir em suas relações inter-humanas
diretas. Não há espaço para a cortesia e para o respeito ao próximo
quando fazemos do estado o sistema canalizador de nossas demandas.
Considere
os seguintes exemplos.
Como
indivíduos, não pensamos em extrair, por meio da violência ou da ameaça de
violência, nenhuma fatia da riqueza ou da renda do nosso vizinho. Porém,
em nossa vida política, estranhamente passamos a nos sentir livres e moralmente
desimpedidos para 1) extrair boa parte de sua renda por meio de altas alíquotas
de impostos e 2) controlar sua riqueza — e a maneira como ele a investe — por
meio de uma multiplicidade de regulamentações econômicas.
Como
pais, não pensamos em coagir nosso vizinho para que ele contribua para a
educação de nossos filhos. Porém, como membros de um organismo político,
recorremos à tributação com o intuito de coagi-lo a financiar a educação de
nossos filhos, de modo que eles tenham "educação pública, gratuita e de
qualidade". De quebra, isso faz com que nos sintamos
"liberados" das nossas obrigações morais e pessoais para com nossos
próprios filhos. Alguém que quisesse propositalmente criar uma sociedade
de pais indolentes e negligentes dificilmente teria uma ideia melhor.
Como
seres humanos, não pensamos em surrupiar nosso vizinho de toda a sua poupança e
aposentadoria. Porém, como seres políticos, defendemos que o valor delas
seja brutalmente reduzido por políticas governamentais de inflação monetária,
de crédito fácil e de empréstimos subsidiados para pessoas e empresas de que
gostamos. Como indivíduos, não pensamos em encarecer artificialmente
aqueles produtos que nosso vizinho mais pobre consegue comprar. Como
membros do corpo político, consideramos pefeitamente normal obrigá-lo a pagar
mais caro por meio de políticas governamentais de desvalorização cambial e de
imposição de tarifas de importação, as quais visam a proteger aquelas empresas
ineficientes pelas quais temos alguma preferência.
Como
pessoas caridosas, jamais pensaríamos em atacar a herança de uma viúva e de
seus órfãos, e jamais pensaríamos em coagi-los para que eles nos colocassem
como co-herdeiros. Como membros do corpo político, podemos obrigá-los a
repassar metade de sua herança para nós.
Como
indivíduos empreendedores, não cogitamos obrigar nossos concidadãos que vivem
em outras partes do país a nos auxiliar em nossos empreendimentos locais; como
participantes do sistema político, obrigamo-los a nos ajudar a alcançar nossos
objetivos econômicos por meio de subsídios, repasses obrigatórios e outras
contribuições governamentais.
Dois parâmetros
distintos de moralidade
Se homens
malvados e violentos passassem a assediar nosso vizinho com o intuito de
extorquir uma parte de (ou toda a) sua renda, ou simplesmente se pusessem a
oprimi-lo de alguma forma, nós corajosamente sairíamos em sua defesa. Se
ele porventura ferisse ou até mesmo matasse um de seus agressores, iríamos
absolvê-lo de qualquer acusação criminosa por ter agido em legítima defesa.
No
entanto, se este mesmo vizinho, por ter se recusado a ter seus bens confiscados
pelo estado por não ter pagado devidamente seus impostos, viesse a ferir ou até
mesmo a assassinar em legítima defesa um "representante do estado"
que foi à sua propriedade para confiscá-la, iríamos condená-lo por ter se
recusado a abrir mão de parte de sua riqueza e por consequentemente ter privado
o governo de utilizá-la para financiar aqueles programas de que gostamos.
E com toda a nossa fúria e desejo de vingança, defenderíamos que ele fosse
jogado em uma penitenciária e por lá ficasse "por um bom tempo".
Utilizamos
dois padrões distintos de moralidade para mensurar nossos feitos e
atitudes. Somos rápidos e severos para condenar os delitos que nosso
vizinho comete. Mas somos incapazes de julgar com a mesma severidade
nossas próprias ações quando estas são efetuadas por meio do sistema político.
Condenamos
um vizinho quando este comete fraude, roubo, esbulho, usurpação, sequestro ou
assassinato contra nossos semelhantes. No entanto, somos incapazes de
fazermos um auto-julgamento quando defendemos que o governo confisque a riqueza
alheia por meio de impostos, sequestre aqueles indivíduos que não "pagaram
devidamente" esses impostos, assassine aqueles indivíduos que oferecerem
resistência a este sequestro, reduza a poupança e o poder de compra da
população por meio da impressão de dinheiro (falsificação), estatize ou assuma
forçosamente o controle majoritário de empresas privadas, e usurpe por meio de
regulamentações e burocracias o direito de indivíduos exercerem atividades
econômicas que concorram com as empresas favoritas do governo.
Duas
almas em nosso peito
Condenamos
um indivíduo por desconsiderar suas promessas, seus acordos e seus contratos, e
nos esforçamos para fazê-lo cumprir suas obrigações contratuais por meio de
ações judiciais e de outros meios legais ao nosso dispor. Mas prontamente
condescendemos com práticas governamentais que desprezam promessas e até mesmo
os mais básicos mandamentos éticos. Podemos até mesmo chegar ao cúmulo de
nos simpatizarmos com políticas explicitamente ilegais e condenar aqueles que
são prejudicados por elas e que agiram em legítima defesa para se proteger.
A
realidade é que temos duas almas em nosso peito: uma que procura fazer o que é
moral e eticamente certo, e outra que renega a própria existência de padrões
morais e éticos. A humanidade já pagou, está pagando e ainda irá pagar um
enorme preço por ter rejeitado os mais básicos princípios cristãos do respeito,
da cortesia e do amor ao próximo na esfera da ação política, a qual só faz
crescer. O preço foi, é e será pago na forma de escravidão, guerras e
crescentes tensões sociais.